Dr. Walter Ceneviva/Folha de São Paulo/Caderno/Cotidiano
As finanças do esporte não são apenas de direito privado, mas também de direito público
É COMUM, no esporte, que dirigentes de entidades e clubes permaneçam durante muitos anos em seus cargos. João Havelange (que foi sogro de Ricardo Teixeira) atacou o inglês Stanley Rous, acusando-o de se eternizar na presidência da Fifa, para receber a mesma crítica quando eleito presidente da entidade nacional e da Fifa. Havelange elegeu seu genro presidente da CBF, que o imitou, quanto à permanência no cargo (1989/2012) e à alegação de grandes sacrifícios pessoais. Tostão, um filósofo do futebol, escreveu na semana passada, nesta Folha, que "a história nos mostra também que, em todo o mundo, muitos que assumem o poder costumam fazer as mesmas coisas que antes criticavam". No esporte e fora dele.
Os interessados "explicam" a longa permanência, mas é comum parecer ligada ao amor pelas manchetes, à ambição política, ao vil metal, sem falar na vaidade. Vaidade semelhante à que o presidente da Fifa saboreou quando marcou data de visita ao Brasil para ser recebido pela presidente da República, como se fosse um encontro entre colegas.
O leitor perguntará: o que isso tem a ver com o direito? Tem muito, a contar de um dado incomum: nossa Constituição é das poucas a incluir sessão dedicada apenas ao desporto, no mesmo título em que trata da seguridade social, da saúde do povo ("direito de todos e dever do Estado"), da previdência e da assistência social, da educação, da cultura.
Lendo o art. 217 da Carta Magna, compreende-se a situação brasileira. O dispositivo impõe ao Estado o dever de fomentar o desporto, mas sustenta a autonomia das entidades desportivas, de seus dirigentes e associados no campo da organização e do funcionamento.
Em outras palavras: o Estado não deve intrometer-se com o controle do segmento que integram, o que sugere o exagero de termos Ministério dos Esportes, tal a autonomia de entidades e clubes. O vocábulo "autonomia", no primeiro inciso do art. 217, define o direito dos clubes e das federações de adotarem diretivas de sua livre escolha, para satisfação de fins estatuários que escolherem, sem participação governamental.
Decorre da lição de Emanuel Kant que a autonomia não exclui a observação dos preceitos morais relacionados com o interesse coletivo. É limite ético, a exigir a imprescindibilidade da atenção, no caso do Brasil, apta para dar garantia e transparência aos fatos esportivos, administrativos e financeiros, em particular no esporte profissional.
Não se sabe, ainda, o que os próximos eventos e seus custos imensos, ainda não previstos, trarão para o desporto nacional. A competição esportiva é caldeirão emocional de difícil compreensão e contenção, mas aperfeiçoar os limites da Carta, incompatíveis com a autonomia absoluta, será garantia de progresso e de equilíbrio. Um dos limites consistirá em impedir profissionais da política esportiva de se eternizar no controle de clubes e federações, para livrá-las dos eventuais desmandos decorrentes.
Gastos enormes e obrigações públicas, assumidas para a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos dos próximos anos mostram que as finanças do esporte não são apenas de direito privado, mas também de direito público. O interesse coletivo é de todos os brasileiros. Nosso bolso está na berlinda.
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