Entre incrédulo e atônito, o mundo se pergunta por que o Brasil, a
meca do futebol, um país cujos cidadãos levam no DNA a paixão pela bola
que contagiou o planeta, mostra-se contra a celebração da Copa, um
acontecimento que tantos teriam ansiado. E a resposta possivelmente
acarreta uma surpresa.
As imagens da primeira manifestação de rua contra a Copa, ocorrida no
sábado em São Paulo, a cidade onde tiveram início também os primeiros
protestos maciços em junho passado – quando se disse que o gigante o
Brasil “acordou” –, correram as primeiras páginas tanto pela violência
dos manifestantes quanto pela da polícia, que atirou em um jovem de 24
anos, algo impensável em um regime democrático, pois evoca os fantasmas
da ditadura.
Existe um suspense geral sobre o que ocorrerá dentro de cinco meses.
Talvez não aconteça nada, talvez sim. O lema dos manifestantes, “Não vai
ter Copa”, mobilizou até a presidenta da República, Dilma Rousseff, que
levou a ameaça a sério e colocou em seguida sua hashtag nas redes sociais: #VaiTerCopa.
A perplexidade dentro e fora do país perante esse rechaço à
realização da Copa e a consequente pergunta sobre “Como isso é possível
no Brasil?” são de difícil resposta. Eu me atreveria a dizer que o
resultado final poderia surpreender positivamente o mundo. E isso
independentemente de a Copa acontecer ou não (vai acontecer), e não terá
nada a ver com o Brasil ganhar pela sexta vez o precioso troféu
(tomara), ou repetir a dolorosa tragédia do último Mundial celebrado por
aqui, em 1950, naquela amarga partida contra Uruguai no mítico
Maracanã, no Rio.
Não importa a esta altura se haverá ou não novas e violentas
manifestações como as que foram registradas durante a Copa das
Confederações, quando nos arredores do novo e milionário estádio de
Brasília havia mais gente protestando fora do que vendo a partida
dentro.
As fichas do jogo já estão lançadas. O Brasil foi capaz de criar um
estado de consciência crítica, para além das motivações concretas que
tenham despertado os protestos, que são em muitos casos reais, como o
esbanjamento de dinheiro público, a desatenção à criação de
infraestruturas ou o temor de que o Brasil possa “passar ridículo”
perante os estrangeiros que venham a encontrar um país com serviços
ineficazes. Até a FIFA, aliás, chegou a pôr em xeque a capacidade
brasileira de organizar tal acontecimento, diante do atraso nos
preparativos.
O futebol, e o esporte em geral, sempre foram usados e abusados pelo
poder nas ditaduras e nas democracias como ópio do povo ou como
“hipnotismo”, como dizia o grande Sócrates. Nas ditaduras, de forma
descarada e grosseira, como quando, durante o franquismo, o feroz
ditador Franco assistiu à partida Espanha x Rússia para receber de pé o
grito do estádio: “Franco, Franco, Franco!”. Como se tivesse sido o
generalíssimo, e não Marcelino, jogador do Zaragoza, quem marcou um gol
contra a Rússia “comunista”. O perspicaz jornalista e historiador Elio
Gaspari acaba de recordar que, durante a Copa de 1970, “quando a
ditadura alavancava sua popularidade com os êxitos da seleção”, houve
dias em que os gols eram festejados pelos militantes da Alianza
Libertadora Nacional “com tiros de Winchester”.
Que Rousseff, responsável por presidir um Governo em uma democracia
consolidada, se preocupe com a imagem negativa que possíveis protestos
contra a Copa poderá oferecer ao exterior é algo justo e normal. E ela
cunhou o slogan de que o Brasil vai realizar a “Copa das Copas”,
superando todas as que foram feitas até agora no planeta.
Ocorre-me, à luz de tudo o que está ocorrendo, com os protestos
contra a Copa, que a presidenta pode ter sido profeta sem querer. É
possível que essa surpresa que eu disse que este país poderia dar ao
mundo com a Copa se refira ao fato de que este Mundial seja
possivelmente o último. E poderia ser o Brasil, que conserva intacta em
suas vísceras, apesar de tudo, a paixão pelo futebol, que obrigaria uma
FIFA desprestigiada, envolta em suspeitas de escândalos de corrupção,
movida pelo pior dos capitalismos, a mudar de pele.
O Brasil poderia estar enviando ao mundo uma mensagem para se
precaver contra a degeneração desse evento mundial que se tornou objeto
de suspeitas e ameaça ao verdadeiro futebol, um esporte que está
conquistando até os Estados Unidos.
É como se o Brasil estivesse dizendo que, tal qual andam as coisas
nesse campo, não lhe interessa a Copa, nem jogá-la nem ganhá-la. Que a
paixão pelo esporte está sendo trocada por uma operação capitalista cuja
máxima expressão são as tramoias da Fifa, as quais estão matando o
verdadeiro futebol.
Existe, sobretudo entre os jovens, e mais ainda entre aqueles que
chegam até o centro rico das cidades a partir dos guetos excluídos do
festim –de onde provém boa parte dos astros mundiais da bola – a
convicção, possivelmente nem sequer explícita, de que o futebol, essa
paixão coletiva, deve voltar às origens, aquelas em que os jogadores
davam a alma e o coração em campo, não tanto pelo dinheiro quanto pelo
prazer de vencer e de fazer a torcida vibrar.
Esses jovens intuem que o mundo do futebol se tornou um grande
toma-lá-dá-cá, onde os jogadores são objeto de disputa entre grandes
instituições financeiras, e às suas costas até os funcionários dos
clubes enriquecem ilicitamente, como parece ocorrer com o triste e
emblemático caso da “venda” de Neymar, que levou à demissão do
presidente do Barcelona.
Como me recordou Saturnino Pesquero, maiorquino radicado no Brasil
que lecionou na Universidade Federal de Goiás e é um dos grandes
especialistas em Leonardo da Vinci, se é verdade que o homem criou a
linguagem, não é menos verdade que a linguagem acaba marcando o homem.
Basta ler um artigo sobre a economia do futebol para que apareçam,
referindo-se aos jogadores, palavras emblemáticas como: comprar, vender,
revender, investidores, donos dos jogadores, cujos direitos acabam
sendo “propriedade de…” Uma verdadeira feira de astros cujo valor
humano, artístico e até cultural foi trocado por frias cifras de milhões
de dólares.
Já se disse, com razão, que o futebol e, em geral, as grandes
manifestações esportivas se transformaram em um substituto da guerra.
Enfrentam-se Espanha e França, ou Brasil e Argentina, não com a força
dos canhões e dos Exércitos, mas nos estádios, onde trocam entre si as
antigas bandeiras de conquista, agora como troféus de paz.
Hoje, a violência entre adversários nos estádios acaba com
frequência, também aqui no Brasil, em vandalismo e violência com mortos e
feridos. A guerra volta às arquibancadas. Não terá essa triste
metamorfose a ver com a degeneração geral de um esporte que acabou
aprisionado nas mãos do grande capital especulativo mundial após tê-lo
roubado dos verdadeiros torcedores?
É possível que o Brasil, que nestes últimos 20 anos deu mostras de um
elogiável progresso não só econômico como também democrático, saia
crescido, mais maduro até em seus valores de liberdade e humanidade
justamente com sua rejeição à Copa. Fez bem, por exemplo, a presidenta
Dilma ao desprezar o caviar e o champanhe que a Fifa lhe oferecia no
camarote de honra de onde assistia a uma partida da Copa das
Confederações. “Mas isso aqui é um estádio de futebol!”, e pediu uma
cerveja, como os simples torcedores.
O Brasil, mais maduro hoje do que durante o último Mundial celebrado
em seu solo, se faz a mesma pergunta, que é quase natural entre os
jovens: “Mas o que é isto?”. Como se dissessem: “Não queremos uma Copa
assim. Queremos que nos devolvam o futebol”.
O Brasil desnudou a Copa diante do mundo. O rei ficou nu, e é muito
provável que um dia as crônicas recordem que foram os magos da bola que
tiveram a ousadia de dizer NÃO à sua prostituição.
Talvez o mundo, agora perplexo perante essa postura brasileira
inesperada, acabe amanhã aplaudindo este país do futebol para lhe
conceder outro galardão mais precioso: o de ter arrancado o grande
esporte das garras dos verdugos que o estavam sacrificando no altar do
novo bezerro de ouro.
Algo que os políticos não deveriam esquecer, nem os do Governo nem os
da oposição, porque está em jogo algo muito mais importante do que as
próximas eleições. Os protestos contra a Copa haviam começado já em
2009. Que não caiam na tentação de brincar de reprimir as manifestações
com os métodos das antigas ditaduras; que não minimizem um protesto que
já alcançou interesse e expectativa internacionais e, menos ainda, que
não pretendam usar um protesto convocado talvez para enobrecer este país
em prol de seus pequenos interesses eleitorais.
A aposta é muito maior e mais importante. Para todos. Equivocar-se
poderia levar à surpresa de que o tiro saia pela culatra. Está em jogo
uma aposta arriscada, criativa, valente, sobretudo dos jovens excluídos
dos subúrbios das grandes urbes, que hoje estudam e que foram sempre,
curiosamente, os que mais paixão manifestaram pela magia e o mistério da
bola, que já é parte da cultura popular deste povo privilegiado. E que
possivelmente por isso o defenda com maior afinco.
Fonte: Juan Arias - JORNAL EL PAÍS/ESPANHA