Lucilio Baptista
Faz uma pausa no trabalho de bancário para conversarmos. Afastado dos relvados há quase dois anos, Lucílio Baptista reconhece as saudades de apitar um jogo importante. Diz que não há nada como entrar no relvado ao som da Liga dos Campeões e orgulha-se de uma carreira sem medos. As críticas dos adeptos não o fizeram deixar os transportes públicos. Mesmo assim, acredita que se alguma vez tivesse sido agredido teria acabado a carreira.
Porquê ser árbitro?
Veio da família. O meu pai foi árbitro. Não chegou ao topo, mas esteve na II Divisão. Portanto nasci no meio da arbitragem, foi natural. Joguei futebol e depois quando chegou a passagem de júnior para sénior optei pela arbitragem.
A carreira de jogador foi boa?
Era um jogador mediano [risos], jogava na extrema-direita. Estive em dois clubes que nunca esquecerei e pelos quais tenho um grande carinho: Cova da Piedade e Beira-Mar de Almada. Ainda tenho amizades desse tempo. E fui campeão da II Divisão distrital de juniores pelo Beira-Mar.
Chegou a arbitrar algum jogo deles?
Há uns cinco, seis anos, dirigi um jogo de juniores entre o Beira-Mar de Almada e o Trafaria. E não foi nada fácil, confesso. Os jogos de juniores são muito complicados.
Tem a noção de quantos jogos apitou?
No total foram mais de 600. Na primeira categoria foram 244 jogos em 18 anos; internacionais (oficiais) foram 105, 106 ao longo de 15 anos. E ao todo estive nos quadros da federação durante 22 anos: dois na terceira categoria, dois na segunda e o resto na primeira.
Lembra-se do primeiro?
O Trafaria com o Monte da Caparica, no campeonato distrital de juvenis. Não sei a data, mas tenho-a em casa.
Correu bem?
Era um dérbi e as duas equipas estavam bem classificadas. Nos primeiros minutos nem sabia o meu posicionamento. Andava ali um bocado perdido. Mas não correu mal. As equipas portaram-se muito bem, penso que sabiam que era o meu primeiro jogo. Tinha 18 anos.
Apesar da experiência familiar, sabia que estava a entrar num mundo onde seria muitas vezes um alvo fácil?
Não tinha bem a noção. Sabia que era já um mundo complicado, mas estamos a falar de há 28 anos. Os tempos eram outros. E um jovem de 18 anos não pensava que cinco ou dez anos depois ia estar na primeira categoria ou na segunda. O gosto foi-se cimentando e as coisas também me correram bem. Se tivessem corrido mal, teria saído. Nunca pactuaria com situações como as que ainda hoje vejo, de violência. Estava fora de questão. Se algum dia tivesse sido agredido, duvido que tivesse continuado.
Nunca chegou a ser confrontado?
Claro que cheguei. Mas nunca fui atacado por adeptos.
Como aconteceu com Pedro Proença, por exemplo, num centro comercial.
Sim, situações dessas. E atenção: em 18 anos dirigi 26 clássicos oficiais, mais de cem jogos dos três grandes. É natural que tivesse passado por situações complicadas. Mas nunca chegou à violência. Ainda por cima ando de transportes públicos e durante toda a minha carreira nunca deixei de os utilizar.
Depois da final da Taça da Liga, em 2009, falou-se muito em ameaças…
… esse assunto ficou e está encerrado da minha parte.
Mas quando percebia que tinha errado como era o dia seguinte?
Terrível. É uma frustração tremenda. Nenhuma pessoa de boa-fé, de princípios, pode ficar contente com uma prestação negativa. Para mais quando os erros têm influência. O árbitro é quem sofre mais, isso garanto-lhe. E a família, porque é com ela que desabafa.
Tal como os treinadores estudam o adversário do jogo seguinte, tentava perceber onde haveria pontos de conflito, a que atitudes deveria estar mais atento?
Se dissesse que no início da minha carreira preparava um jogo estaria a mentir. Os dados disponíveis eram mínimos. Nestes últimos anos, talvez desde 2000, tem havido uma grande transformação. E ao nosso lado há um concorrente – porque um árbitro está sempre em concorrência com o outro, há uma classificação – que quer chegar ao meu lugar. Se quero mantê-lo, tenho de trabalhar mais que ele. Nos últimos anos da minha carreira preparava os jogos, procurava o máximo de dados possível. Mas tinha sempre uma coisa em atenção: não me deixar influenciar demasiado pelas estatísticas. São uma óptima ferramenta de trabalho, mas temos de deixar uma certa margem de manobra.
Além da evolução técnica dos árbitros, o que se pode fazer para reduzir os erros?
A aplicação das novas tecnologias, principalmente na linha de golo, é uma questão de justiça. E em casos de agressões flagrantes, por exemplo. A ajuda dos árbitros adicionais também poderá melhorar. A profissionalização é uma coisa que me faz ainda alguma confusão. Não sou crítico, mas é preciso mais condições de treino, mais formação. Tudo para que a probabilidade de errar seja cada vez menor. O erro nunca vai desaparecer, mas pode ser reduzido. E o árbitro tem de ser um atleta, com uma condição física extraordinária. Tem de estar ao nível de um jogador de alta competição, se possível num patamar acima.
Tinha o hábito de ver o que saía sobre si na imprensa e na internet?
No início da carreira vemos tudo e revoltamo-nos com o que o jornalista disse ou escreveu. Ao longo dos anos vamos conhecendo quem escreve, como escreve e vamos seleccionando. Dizer que não via seria mentira. Em função disso fazia a minha avaliação. Alguns eram-me completamente indiferentes. Outros, pelo respeito, pela forma como escreviam, levavam-me a reflectir.
Os árbitros são bem pagos para a responsabilidade que têm?
Um árbitro nunca é bem pago, mas atendendo às condicionantes do país acho que recebe valores muito simpáticos.
Esteve na final do Mundial de sub-17 de 2001, na Taça das Confederações em 2003, no Euro-2004, apitou jogos de fases de qualificação de selecções, da Liga dos Campeões e da Taça UEFA. Lá fora, que ambientes foram mais difíceis de suportar? E em que países?
Boa questão. Os jogos no eixo ex-Jugoslávia, Turquia e Grécia. Tem a ver com a cultura. Existe muita paixão, superior até à dos portugueses pelo futebol.
E qual foi o jogador mais problemático que teve pela frente?
Francesco Totti.
Porquê?
Foi um jogador que, em dois ou três jogos que dirigi, hum… foi complicado. Deu-me muito trabalho mesmo.
Pelo que dizia?
E pelo feitio muito especial, pela maneira de ser. Não era um jogador nada fácil na relação com o árbitro e com os adversários. De resto era um jogador de topo. Por outro lado, houve um que também me deu muito trabalho no estrangeiro: o Sérgio Conceição [risos]. Era um grande jogador, uma excelente pessoa, a quem auguro uma boa carreira como treinador. Agora como jogador… Mas foram os dois jogadores que mais me marcaram. Cá em Portugal – já sei que me vai fazer essa pergunta – tinha muitas dificuldades com o Jorge Costa, enquanto capitão do FC Porto. E hoje também tenho um grande carinho por ele, se calhar fruto desses conflitos. Mas era muito, muito, muito complicado. Mesmo!
E qual foi o momento mais alto?
A final do Mundial de sub-17, em Trindade e Tobago –, que começou poucos dias depois do 11 de Setembro. A França ganhou à Nigéria e o melhor jogador foi o Pongolle. Também destaco as finais da Taça de Portugal e o Euro-2004, claro, por toda a envolvência.
Ao longo da carreira continuou sempre a trabalhar como bancário. Era difícil conciliar as duas actividades?
Muito. Com tantos jogos cá, jogos internacionais, de camadas jovens, da federação, torneios... e também estive dois meses no Japão, vai fazer dez anos agora. Ehhh, o tempo passa!
A arbitrar?
Sim, na J-League. Aí pode dizer-se que era profissional. Tinha acabado o Mundial-2002 e pouco depois recomeçou a liga japonesa. Ainda dirigi oito jogos, foi uma experiência muito gira.
Mas cá chegou a ter algum percalço que o impedisse de chegar ao trabalho no dia seguinte?
Houve muitos jogos em que saí do estádio perto da uma da manhã e às 8h30 estava no meu local de trabalho. Fazia a viagem de noite, praticamente directo.
Sentiu sempre que valia a pena?
Senti, até pela carreira que fui tendo. Mesmo que alguns jogos não corressem tão bem como esperava. Nunca desci de categoria, tive uma carreira em progressão.
Como lidou com o fim-de-semana após o último jogo?
Preparei muito bem a minha saída. No início foi mais complicado, hoje já não tanto. Mas tenho muitas saudades dos jogos da Liga dos Campeões, dos jogos da UEFA, da FIFA, da J-League, dos jogos no Qatar.
Um árbitro também vibra quando entra em campo ao som do hino da Liga dos Campeões?
Era o que mais me fazia vibrar. O momento em que me sentia melhor era quando ouvia o hino da Liga dos Campeões. Mexe com qualquer árbitro. É uma coisa indescritível.
Fonte: ionline/Refereetip
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