sexta-feira, 18 de abril de 2014

A Inglaterra no Brasil: a ligação entre dois países do futebol

A Inglaterra no Brasil: a ligação entre dois países do futebol
© Getty Images
“Numa tarde fria de outono em 1895, reuni os amigos e convidei-os a disputarem uma partida de football. Aquele nome, por si só, já era novidade, visto que na época somente conheciam o críquete”, afirmou Charles William Miller, em depoimento à revista “O Cruzeiro”, em 1952. Essa frase pode parecer absolutamente normal em muitos territórios, nos quais os gramados servem de base para jogadores munidos de bastões e outros apetrechos. Neste caso, porém, o personagem estava se referindo à cidade de São Paulo, a maior do Brasil. Sim, o Brasil, o país do... críquete?
Ao menos no final do século 19, a impressão era essa. Mas esse paulistano, descendente de ingleses e escoceses, tratou de fazer sua parte para mudar o curso da história, a ponto de ser considerado o grande pioneiro da modalidade que se tornaria praticamente uma religião para sua nação.
Se, mais de cem anos atrás, o nome mais difundido do esporte era o football – em inglês mesmo –, não tardou muito para que os brasileiros, tal como fizeram com a prática do esporte em si, se apoderassem do termo, aportuguesando tudo. Nasceu, então, o “futebol” - assim como outros vocábulos derivativos, como “chutar” (shoot), “driblar” (dribble) e, claro, o “craque” (crack).
Pois foi com eles, os craques como Pelé, Garrincha, Tostão e Ronaldo, que a Seleção encarou, até hoje, uma série de quatro clássicos contra o English Team nas Copas do Mundo da FIFA: em 1958, 1962, 1970 e 2002 - todos anos em que os brasileiros foram campeões mundiais. Depois de um empate sem gols no primeiro embate, o Brasil venceu os três posteriores. O tipo de retrospecto que justifica a alcunha de, aí sim, “país do futebol”.
Apita o árbitro
Nesta série que investiga os laços entre diversas nacionalidades e o país-sede da Copa do Mundo da FIFA 2014, o FIFA.com já abordou os vínculos históricos com povos europeus como italianos, alemães e espanhóis. Com seus emigrantes, todos eles contribuíram para o desenvolvimento de uma potência de chuteiras. Mas nada disso faria sentido não fosse a Inglaterra, patrona do esporte.
Foi na Banister Court School de Southampton que o jovem Charles Miller, que hoje dá nome à praça em que se localiza o lendário estádio do Pacaembu (sede da Copa de 1950), teve contato com o futebol nos mínimos detalhes. Esse conhecimento o levou diretamente ao excesso de bagagem na hora de retornar ao Brasil: trouxe duas bolas usadas, uma bomba para enchimento, um par de chuteiras, dois conjuntos de uniforme e um livro com as regras do jogo de então. Daí que, depois de muita conversa e dúvidas tiradas com os amigos anglo-brasileiros, Miller organizou no dia 14 de abril de 1895 aquela que é considerada em geral como a primeira partida de futebol no país, num campo no Brás, em São Paulo.
Há historiadores que contestam a informação, levantando vestígios de “peladas” anteriores no Rio de Janeiro e no Pará. Mas o match promovido na várzea paulistana teria sido ao menos o primeiro evento “organizado”, com árbitro e regras valendo. De um lado estavam os funcionários da São Paulo Railway, com Miller. Do outro, aqueles que vestiam a camisa da Gas Company of São Paulo – os ferroviários venceram por 4 a 2. Serviu como pontapé inicial para a história.
“O período de aclimatação ao novo esporte, porém, não foi rápido”, escreve o historiador John Mills, autor do livro “Charles Miller: O Pai do Futebol Brasileiro”. “A surpresa ao saber, em 1894, que por aqui ainda não se conhecia o futebol, tinha razão de ser. Afinal, os contatos entre um país e outro não eram tão espaçados que impedissem que se conhecesse o esporte que na Inglaterra já havia sido regulamentado em 1863, que tanto empolgava e se alastrava por toda a Europa.”
As origens
Com o passar dos anos, porém, a modalidade foi angariando seus adeptos entre a classe proletária paulistana. Os jogos se espalhavam pela cidade, e diversos clubes eram criados. E foi justamente um grupo de operários que, no dia 1º de setembro de 1910, lançou o Sport Club Corinthians Paulista. O título era uma reverência direta ao xará londrino Corinthians Team, que excursionava pelo Brasil, arrasando rivais. Na véspera, 31 de agosto, por exemplo, os ingleses haviam acabado de vencer por 2 a 0 a Associação Atlética das Palmeiras (nenhuma ligação com o Palmeiras de hoje, diga-se). Detalhe: estavam na plateia  Anselmo Corrêa, Antônio Pereira, Carlos Silva, Joaquim Ambrósio e Raphael Perrone, todos fundadores da versão paulista.
O Corinthians Team foi um dos muitos clubes britânicos que visitaram o país no início do século 20. Entre eles consta o Exeter City FC, que vinha de longa viagem pelo continente e chegou ao Rio em 1914. Primeiro, enfrentaram um combinado de compatriotas. Depois bateram um combinado carioca por 5 a 3. O maior desafio, porém, estava marcado para o estádio do Fluminense, no dia 21 de julho. Cerca de 5.000 espectadores encheram as arquibancadas das Laranjeiras, e dessa vez os ingleses saíram derrotados por 2 a 0, de modo surpreendente. E qual era o adversário? Simplesmente a equipe que a CBF reconhece como a primeira Seleção Brasileira já escalada. 
"Os jogadores ingleses, acostumados a jogar num regime profissional, disputavam os lances com mais apetite, ao passo que os brasileiros, ainda amadores, procuravam jogar mais por exibição e lazer”, relatam os autores Antonio Carlos Napoleão e Roberto Assad, no livro oficial da Seleção Brasileira. “Mesmo assim, a habilidade dos brasileiros surpreendeu.”
Do you speak English?
Um ano antes da visita do Exeter City, o inglês Henry Welfare, natural de Liverpool, havia se radicado no Rio, inicialmente com os planos de ser um professor secundário no Ginásio Anglo-Brasileiro. Rapidamente foi levado ao Fluminense para jogar de centroavante – com 1,90 m de altura, impressionava pelo porte físico, ganhando o apelido mais que usual de “Tanque tricolor”. O gigante balaçou as redes sem parar pelo Flu e até hoje detém o recorde do maior número de gols num só jogo pelo time (seis, contra o Bangu, em 1917). Foi tricampeão carioca, liderou a artilharia da competição e se tornou até mesmo sócio benemérito do clube.
Quando pendurou as chuteiras, porém, se tornou técnico do Vasco, o que assustou muitos torcedores. “No principio, causou muita espécie, porque ele saiu do Fluminense e foi para o Vasco, num tempo em que era muito problemático a gente mudar de clube. A gente não mudava de clube porque era feio...né?”, afirmou Flávio Costa, também técnico vascaíno e da Seleção Brasileira de 1950.
Fato é que Henry  também fez história pelo Vasco, dirigindo a equipe e estrelas como Leônidas da Silva, Fausto e Domingos da Guia por dez temporadas, ganhando três títulos e figurando pelo menos entre os três primeiros colocados em oito anos. Este foi um caso raro, porém, de um atleta britânico a fazer carreira em agremiações brasileiras. Assim como demorou bastante para que os jogadores brasileiros encontrassem espaço no futebol inglês.
Yes, I do
Neste ponto, o atacante Mirandinha, 20 centímetros mais baixo e 72 anos depois que Welfare, aparece como um contraponto interessante. Depois de brilhar com a Seleção pela Copa Stanley Rous, recebeu proposta do Newcastle. “Fizeram uma proposta ao Palmeiras. Eu estive bem perto de assinar com o América do México, mas o Newcastle insistiu e me levou”, diz ao FIFA.com.
Mirandinha assinou em 1987 e atuou por duas temporadas pela equipe. Foi o suficiente para cair nas graças dos Magpies. “Naquela época, a maioria dos clubes ingleses ainda jogava à base do chutão. Mas, para minha sorte, o Newcastle não era tão ‘inglês’ assim; não jogava tanta bola aérea. Isso me ajudou”, diz. “Adoro o clube e a cidade, onde deixei muitos amigos. Sou muito bem tratado até hoje, me recebem com muito carinho. É especial.”
Na década seguinte, foi a vez de outro brasileiro marcar presença na Premier League. E alguém ainda mais baixo que Mirandinha: Juninho Paulista, com 1,65 m de altura, mas um talento nos pés daqueles. No Middlesbrough, o meia viu de perto a mudança nos padrões técnicos e táticos do campeonato. “Só fui mesmo para o futebol inglês porque o Bryan Robson tinha essa mentalidade de buscar um jogo mais técnico”, diz ao FIFA.com. “Quando estava em negociação, me mandaram uns jogos do time. Assisti e só pensei como jogaria ali. Era só chutão de um lado para o outro. Então, o Robson me disse: ‘pois é, você viu a fita? Por isso mesmo que eu quero trazer você; para mudar isso’. Eles queriam jogadores mais técnicos, queriam a bola no chão.”
Juninho foi outro a ser adotado pela torcida, a ponto de rir quando questionado em uma entrevista em 2013 se era mais reconhecido em Middlesbrough ou em Itu. “Olha, acho que lá na Inglaterra”, afirmou. Hoje, vendo seu Ituano ser campeão paulista, derrotando o Santos na final, provavelmente a resposta seria outra. Mas não se apaga o carinho que recebe sempre quando visita a cidade no nordeste inglês.
Hoje, são vários os brasileiros em ação por lá. Só o Chelsea conta com quatro – David Luiz, Ramires, Oscar e Willian, todos constantes na Seleção. O Liverpool também conta com Lucas Leiva e Philippe Coutinho, que, inclusive, chegou a liderar a venda de uniformes do clube antes de a temporada começar.
“Eles têm a sorte de jogarem num futebol bem diferente, mais fácil do que o que encontrei. Hoje existem somente jogadores de alto nível, de todas as partes do mundo, em ótimos gramados. A cultura do futebol inglês é completamente diferente hoje em dia”, diz Mirandinha.
Tão diferente que, vejam só, pode representar um desafio para  alguém como Lucas Leiva. Ele chegou ao Liverpool em 2007 com o prestígio de ser eleito o melhor volante do Campeonato Brasileiro, o que não o impediu de se impressionar diante de uma nova realidade. “Sentia como se estivesse a 50km/h e todos os outros, a 100km/h. Eu não estava preparado. Tanto que, no início, eu me saía melhor nos jogos de Champions League. Fui de um extremo ao outro, em termos de velocidade do jogo.”
Há mais de um século, o Brasil recebia o jogo inglês e dava seus toques. Hoje, os brasileiros se adaptam ao que a Inglaterra pode oferecer de melhor. Segue assim a evolução do esporte, não importando exatamente o país em que estejamos. Desde que seja do futebol.
Fonte: Fifa.com

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