sábado, 2 de junho de 2012

O homem que expulsou Pelé

Diogo Olivier/Zero Hora/RS
Pelé só acompanha o lance, pela ponta. O Santos está sendo atacado pelo Grêmio, no Pacaembu daquele novembro de 1968. A bola escorrega até a linha de fundo. Tiro de meta, é claro. Pelé aponta para a sua pequena área e já vai trotando rumo ao meio-campo, gesto acompanhado pelos companheiros.
Não, não, corrige Agomar Martins, sinalizando o semicírculo na esquina do campo. É escanteio. Pelé esbraveja. Gesticula e dá meia volta. Mira aquele 1m60cm de bigode mais preto do que graxa de sapato na Praça da Alfândega, impecável dentro de um uniforme que jamais amassava, se aproxima a passos largos e despeja sobre ele o poder natural dos gênios:
– Você não viu que foi tiro de meta?
– Você, não: Senhor.
– O senhor acha que não erra nunca?
– Senhor Edson: o senhor é o rei do futebol, mas o rei do apito sou eu. É escanteio.
Segue o jogo, que terminaria 3 a 1 para o Santos. Minutos depois, Pelé entra por cima da bola – conforme a visão de Agomar, é claro. Ato contínuo, ele ergue o cartão vermelho o mais alto que a sua envergadura diminuta permite. As pessoas doidas para ver o 10 eterno em ação, e Agomar Martins o expulsa como se ele fosse um volante qualquer. Pelé não se conforma. Para quem apitou mais Gre-Nais do que qualquer outro, 23 entre as décadas de 1960 e 70, aquela bronca era canção de ninar.
Agomar nem ouve o choro de Pelé. Apenas repete, com a mesma voz bem colocada que hoje arranca aplausos cantando boleros na noite de uma Porto Alegre que o viu nascer há 81 anos, no Quarto Distrito, pertinho do campo do Renner, cidade onde casou-se com Selma e teve dois filhos e cinco netos, cidade na qual tornou-se árbitro apitando preliminares da várzea antes de arriscar dribles nos jogos de fundo, esta Porto Alegre em que se formou em Direito e seguiu a carreira militar até migrar para a reserva como tenente.
Mas voltemos ao dia em que Agomar Martins expulsou Pelé. O Rei resmungava e Agomar repetia, sem mover um músculo do corpo (imagino que talvez só a sobrancelha esquerda se ergueu):
– Senhor Edson: o senhor vai ter que se retirar.
– Não vou sair!
– Então, senhor Edson, eu vou suspender o jogo. Ou o senhor terá que me agredir agora mesmo, pois aqui o senhor não fica mais.
A Polícia Militar recusou-se a entrar em campo para retirar Pelé (os soldados queriam vê-lo em ação). Por fim, ele aceitou as ponderações de Agomar e foi para o chuveiro mais cedo. Encontraram-se depois. Nunca mais tiveram qualquer altercação.
– Sempre chamei os jogadores de senhor e exigia o mesmo tratamento. Não havia motivo para ser diferente com Pelé. Com o tempo, era Seu Agomar para cá, Seu Agomar para lá, que é como deve ser. Não pode dar intimidade – relembra Seu Agomar.
A expulsão de Pelé ou aquele pênalti no Gre-Nal de 1977 passam longe do dia em que a torcida derrubou o alambrado a 11 minutos de jogo. Foi há mais de 40 anos. Não havia transmissão de TV. Ninguém ficava sabendo das barbaridades nos estádios dos confins da América. Agomar era bandeirinha em Oriente Petrolero x LDU, em Santa Cruz de la Sierra. O árbitro deu pênalti contra o time da casa e expulsou dois por reclamação. Na sequência, Agomar marcou um impedimento claro, coisa de 10 metros, mas a fúria já havia cegado os bolivianos, que invadiram o campo:
Eu era metido, reconheço. A bronca nem era comigo, mas saí batendo. Como ficar quieto numa hora dessas? A polícia acudiu, e eu estou vivo.
Nisso, Nerci Maidana Padilha, o Nito do Bar do Nito, um ex-meia canhoto que jogou Gauchão pelo Grêmio Santoangelense e levou cartão amarelo de Agomar, tira a mão direita ágil do violão e o chama ao palco. Hora de um dos maiores personagens do futebol gaúcho exibir sua faceta quase desconhecida: a de cantor.

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