segunda-feira, 11 de maio de 2015

Vida de árbitro: assistentes de arbitragem, mulheres se impõem no Gauchão

Na segunda matéria da série, Luiza Reis e Andreza Mocelin contam suas experiências em campo.

A bandeirinha Luiza Reis leva travesseiro rosa nas viagens com a equipe de arbitragem. A caminho do jogo de 25 de março entre Brasil e Aimoré, em Pelotas, ela colocou o travesseiro no colo, o celular sobre ele, e passou parte do trajeto pela BR-116 retirando com acetona os excessos do esmalte violeta das unhas.

Acompanhantes no carro, o bandeira Júlio César dos Santos, o quarto árbitro Lucas da Silva e o árbitro Márcio Coruja nem estranham mais os hábitos da colega de 26 anos, desde o ano passado trabalhando no Campeonato Gaúcho. 

Já no vestiário do Estádio da Boca do Lobo, ela dispensou o salto alto, calçou chinelo de dedo dourado e vestiu uniforme de aquecimento no banheiro, asseado até. De repente, Luiza apareceu de calção térmico e sobre ele ajeitava uma saia-short preta. Passou gel no cabelo e o prendeu no com uma trança para atrás. Carregou no fixador.

— Eu preciso correr, cabelo não pode ficar solto. Tenho de ser prática — justificou-se. Na volta do aquecimento no campo, Márcio Coruja apresentou o plano de jogo no laptop e deu uma preleção geral e individual. Para a bandeirinha, o recado foi claro:

— Amiga, concentração e foco. Não podemos ter emoção. Absorve, mas usa técnica e tranquilidade. Se tiver que ter energia, energia. Se tiver que falar forte, fala forte. Estamos contigo.

Antes de ir a jogo, Luiza dedicou mais um tempo à frente do espelho retocando o fixador no cabelo e o batom rosa. No braço, a tatuagem de uma bandeirinha de arbitragem.
  
Quando a equipe entrou em campo, assovios de fiu fiu foram endereçados à morena que avançava solene. Nem eram tão espalhafatosos, não duraram muito. Como assistente dois, tocou-lhe correr pelo lado oposto das sociais, o que significou conviver 90 minutos à frente da fúria da torcida xavante, com o estádio lotado. O jogo começou, e ela ouviu insultos e alguns gracejos:

— Manda o teu WhatsApp!
A torcida esqueceu Luíza até o momento em que ela assinalou impedimento em contra-ataque do Brasil. Uma tempestade de vitupérios lhe caíram sobre os ombros. Ela não se abalou. No lance do impedimento, havia corrido 30 metros, como uma atleta. E ela é professora de Educação Física.

No intervalo, o Brasil vencia por 1 a 0, em jogo veloz e nervoso. Os árbitros chegaram exaustos ao vestiário. Antes de voltar a campo, Luiza retocou o batom:

— Evita a boca seca — justificou rindo, sabendo que estava profanando tabus. Não houve fiu fiu no retorno ao gramado, o Brasil fez 2 a 0, e a carga de insultos só voltou quando o Aimoré pressionou nos últimos minutos. Ao final do jogo, de volta ao vestiário, Luiza pode conferir o celular. Os pais Márcio e Neca Reis estavam aflitos querendo saber como se portou a filha, e ela prometeu levar de Pelotas quindins e pastel de Santa Clara. Era hora do banho.

Luiza é a primeira, o local do chuveiro é aceitável na Boca do Lobo, e os colegas aguardam no recinto do vestiário finalizando dados da súmula. Também o delegado do jogo, Edson Machado, está ali, produzindo o relatório e pagando a arbitragem.

Enrolada na toalha de banho, Luiza deixa o chuveiro e vai se vestir em um box ao lado. Não parece chamar atenção. Quando volta vestida, retoma o espelho, passa lápis preto nos olhos, retoca o batom e coloca brincos. Agora, de salto, fica bem mais alta do que o seu 1m68cm e coloca o perfume Two One Two Vip. A fragrância feminina se exala pelo vestiário de camisetas, calções e cuecas suados e chuteiras e meias sujas.

É a prova definitiva de que Luiza revolucionou o ambiente de marmanjos. Os homens vão para o banho, o trânsito no vestiário será grande, e ela se retira. Aguarda do lado de fora da porta.

Passado o jogo, a bandeirinha pode voltar aos estudos. Formada na Ufrgs, durante a semana ela faz mestrado em Promoção da Saúde, na Unicruz, em Cruz Alta, onde mora com os pais. Os fins de semanas ela passa em Porto Alegre. Há um ano está sem namorado, e justifica resignada:

— Não há como, eu não tenho fim de semana.
Sem vestiário para elas.

Além dos estádios da dupla Gre-Nal, apenas o Alviazul, do Lajeadense, e o Centenário, do Caxias, dispõem de vestiário feminino. Nos demais, o que existe é o banheiro separado do box do chuveiro, e a conservação varia do asseado ao horripilante. Nos estádios do São Paulo, de Rio Grande, do São José,  do União Frederiquense e do Veranópolis, enquanto a mulher toma banho, os homens aguardam fora.

Quando toca a vez de a mulher esperar fora, corre o risco de ser identificada pela torcida.  Há improvisações. Quando trabalhou em Novo Hamburgo e União, a assistente Andreza Mocelin utilizou o vestiário da comissão técnica no Estádio do Vale. No jogo do São Paulo contra o Passo Fundo, o clube cedeu uma salinha ao lado do reservado dos árbitros no Estádio Aldo Dapuzzo. 

— Nunca passei por constrangimentos nos nossos estádios — afirmou Andreza, estreante este ano na elite do Gauchão e com cinco anos de passagem por divisões inferiores. 

Mas ela sentiu toda a intolerância do futebol no dia 24 de fevereiro, em Rio Grande. O jogo se dirigia para o 1 a 1 e, no último minuto, o centroavante Teco marcou o que seria gol da vitória do São Paulo, não fosse a sinalização de Andreza. Ela viu centímetros de impedimento e manteve com firmeza a bandeira para cima, a metros da torcida revoltada aos gritos. O árbitro Luiz Teixeira Rocha confirmou a anulação da assistente, não sem alguma surpresa.

— Ela foi heroica ao marcar aquele impedimento naquela hora, com o estádio lotado — disse Luiz Teixeira. O estádio explodiu em insultos e grosserias.

— O que está fazendo aqui? Isso não é pra ti, vai pra casa... — gritavam das arquibancadas contra a loira de olhos verdes que havia impedido a vitória do seu time. O acesso ao vestiário só foi possível com a ajuda do Batalhão de Choque da Brigada.

— Saímos nos braços da lei — brincou o árbitro.
Minutos depois, quando Andreza já estava pronta para voltar a Porto Alegre, avisaram que haviam visto o lance na TV: Teco estava impedido.

Ofensas maiores vêm da torcida e de pessoas que se dizem dirigentes e não são conhecidas. Os jogadores reclamam, são acintosos, mas não avançam o sinal. Às vezes até surpreendem, como no dia em que Luiza escrevia a ocorrência no cartão e um deles fez graça:

— Quer anotar o meu número?
Formada em Educação Física e professora de natação, aos 32 anos Andreza só deixa de lado o futebol para atender à filha Raissa, de seis anos. A assistente e o namorado, o preparador físico Túlio Flores, da base do Coritiba, são capazes de assistir a jogos da segunda divisão na TV nas sextas-feiras à noite.

— Sou de família italiana e torço para a Juventus. Quando tem churrasco em casa, as mulheres ficam de um lado, e os homens assistem a um jogo de outro. Adivinhem com quem eu fico? — disse Andreza, irmã do árbitro Alessandro Mecelin, que nada tem a ver com o ex-árbitro José Mocelin, bem mais antigo.

Outras duas garotas começam na arbitragem. Jaqueline Thomas da Silva é de Capão da Canoa e Maíra Mastela Moreira, 22 anos, de Santa Maria. Maíra dá aula em estúdio fitness e passa os fins de semanas em jogos de campeonatos juniores, juvenis e infantis de sua região. Ganha de taxa R$ 244 nos juniores a R$ 69 nos infantis.

Quando sobra tempo, corre como bandeirinha em campeonatos amadores da associação de Santa Maria. Pagam-lhe de R$ 130 a R$ 210. No sábado de 24 de abril participou do campeonato municipal de Ibirubá e amealhou mais R$ 170.

— Eu faço o que gosto, não importa o que pagam — disse a menina, outra louca por futebol.
Em pouco tempo estará fazendo como Luiza Reis, que, quando sai escala, procura logo seu nome com aflição, só depois vai conferir em qual jogo.
FONTE: *ZHESPORTES/POR JONES LOPES DA SILVA/SÉRGIO VILLAR

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